CONTEÚDO PARA LICITANTES

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Dr. Wussander Camello

Empresário, Professor e Advogado Especialista em Licitações.

A Lei 14.133/2021 trouxe mudanças profundas no regime de licitações e contratos administrativos no Brasil; trata-se, sem dúvida, de uma das mais relevantes legislações aprovadas nos últimos anos.

Embora não seja “revolucionário” ou “disruptivo”, o texto da Lei nº 14.133/2021 representa significativo avanço legislativo e possui novidades que podem ter seu potencial ampliado, dependendo da regulamentação.

Por outro lado, há enormes desafios na interpretação de algumas de suas regras, sobretudo pelo fato de que seu texto possui um formato deveras analítico que não optou, a priori, pela simplificação do procedimento e pela mudança da estrutura procedimental definida desde outrora pelas legislações anteriores. Além disso, a Lei nº 14.133/2021 optou pela consolidação de experiências pretéritas, agregando normas já vigentes e, inclusive, absorvendo regras anteriormente dispostas em normativos secundários (inclusive instruções normativas), incorporando decisões de tribunais pátrios e adicionando alguns tons de novidade².

A questão é que, nada obstante o caráter analítico da Lei, muitos defensores propõem a inclusão de ritos, procedimentos e steps de controle além dos definidos pelo legislador, com base em argumentos válidos, mas que precisam de certa reflexão, para que tais exigências normativas sejam aplicadas de maneira coerente ou mesmo gerem ineficiências ao modelo de compra pública.

Uma questão interessante envolve a possibilidade ou não de recurso administrativo contra a escolha do contratado ou a preterição de um fornecedor, nos procedimentos de contratação direta.

Há argumentos legítimos contrários à implementação desta fase recursal, no processo otimizado de contratação direta, mas há também argumentos legítimos favoráveis à aplicação do regime jurídico recursal da Lei nº 14.133/2021, nessas hipóteses. Em nossa opinião, a resolução desse dilema é um pouco mais complexa e exige certo equilíbrio entre as propostas aparentemente antagônicas.

Primeiro, importante destacar que o texto da Lei nº 14.133/2021 não previu esta fase recursal no procedimento de contratação direta. Outrossim, importante ter como premissa que o legislador, ao prever as hipóteses de contratação direta – tanto por dispensa quanto por inexigibilidade – visou flexibilizar o processo administrativo para garantir maior celeridade e eficiência, sobretudo em situações excepcionais, conforme autorizado pela própria constituição.

Sendo exceções à obrigatoriedade de licitar, o próprio formato das contratações diretas reflete a decisão legislativa de otimizar o procedimento de seleção do fornecedor, pela percepção de que a rigidez do processo licitatório comum seria ineficiente ou até prejudicial ao atendimento da pretensão contratual.

Diferente de uma licitação formal, onde há um julgamento baseado em critérios objetivos (preço, técnica, etc.), com diversos steps de controle estabelecidos para o processo licitatório, a contratação direta não segue o mesmo rigor procedimental. Por isso, trazer os mesmos ritos recursais aplicáveis às licitações pode desvirtuar a lógica por trás dessa modelagem.

Se, em uma dispensa emergencial, por exemplo, for permitido que fornecedores apresentem recursos ou impugnações contra a escolha do contratado, com o efeito suspensivo previsto pelo artigo 168 da Lei nº 14.133/2021, a otimização pretendida pelo legislador seria prejudicada e provavelmente o bem a ser tutelado pela ação pública também. 

Imagine-se um cenário onde o poder público precisa contratar rapidamente serviços ou bens para atender desabrigados após uma catástrofe natural. Se permitirmos que empresas não selecionadas apresentem recursos contra a escolha do contratado, a resposta urgente do Estado seria atrasada por dias ou semanas, comprometendo o atendimento das necessidades emergenciais da população.

Respeitando as opiniões em contrário, não parece adequada a aplicação recurso hierárquico previsto no inciso I do artigo 165 da Lei nº 14.133/2021 às decisões tomadas em sede de contratação direta.

Em contrapartida, é inegável que, em princípio, qualquer decisão administrativa é passível de recurso. Esse é um dos pilares do Estado de Direito, garantido tanto pela Constituição quanto pelo regime administrativo em vigor, que busca prevenir abusos e coibir arbitrariedades, assegurando o contraditório e a ampla defesa.

No âmbito federal, por exemplo, esse princípio é consagrado na Lei nº 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública federal. O artigo 56 dessa Lei admite o recurso administrativo em sentido amplo contra decisões administrativas, sem restringir sua aplicabilidade apenas a processos licitatórios³ . Assim, qualquer decisão que tenha um impacto relevante sobre os direitos dos administrados pode ser objeto de revisão.

A questão, então, é: como equilibrar a eficiência necessária para as contratações diretas com o direito ao recurso administrativo, pelo fornecedor preterido?

Parece-nos que a solução mais adequada seria afastar a aplicação do recurso hierárquico previsto no inciso I do artigo 165 da Lei nº 14.133/2021, que foi desenhado para os processos licitatórios tradicionais, onde há competição e critérios objetivos de julgamento, e que possui aplicação estrita às hipóteses definidas pelo legislador.

Para situações como as decisões em contratação direta, não submetidas ao recurso administrativo, caberiam duas possibilidades.

A primeira, seria a aplicação do recurso residual de reconsideração, previsto no inciso II do artigo 165, porém sem concessão de efeito suspensivo4.

Uma segunda hipótese seria admitir a utilização do recurso administrativo em sentido amplo previsto, por exemplo, na Lei federal nº 9.784/1999, para garantir um controle mínimo sobre a atuação da Administração Pública, sem comprometer a celeridade pretendida nas contratações diretas. Esse recurso, mais flexível e abrangente, permitiria que eventuais abusos ou erros fossem corrigidos, sem efeito suspensivo a priori, impondo à Administração o ônus de cumprir prazos e procedimentos incompatíveis com a urgência ou especificidade de determinadas contratações diretas.

Essas opções resguardariam o recurso como mecanismo importante de controle social e proteção à legalidade, sem prejudicar a otimização procedimental admitida pelo legislador para as contratações diretas.

Além disso, pode-se cotejar uma terceira hipótese, também legítima, de que pela ausência de previsão legal, eventual insurreição de um fornecedor preterido poderia ser lastreada apenas por manifestação caracterizada como direito de petição ou representação às instâncias competentes.

Por fim, importante ponderar que o legislador, ao formular as hipóteses de contratação direta, já considerou esses aspectos e optou por um procedimento mais simples e célere, reduzindo o controle burocrático em favor da eficiência da contratação; em contraponto, foi rigoroso na responsabilização dos agentes públicos envolvidos, em caso de desvio, definindo, em seu artigo 73 que sendo comprovada que a contratação direta foi realizada de maneira indevida, por dolo, fraude ou erro grosseiro, haverá responsabilidade solidária do contratado e do agente público responsável, por eventual dano causado ao erário, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis.

FONTE: https://ronnycharles.com.br/impossibilidade-de-recurso-administrativo-nas-dispensas-de-licitacao-da-lei-14-133-2021/

Referências Bibliográficas

1 Advogado, Consultor e Parecerista. Doutor em Direito do Estado pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Advogado da União licenciado. Foi Membro fundador da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União. Autor de diversas obras jurídicas, destacando: Leis de Licitações Públicas comentadas (15ª ed.); Direito Administrativo (coautor. 14ª ed.); Licitações e
Contratos nas Empresas Estatais (coautor. 3ª ed.) e Improbidade Administrativa (coautor. 4ª ed.), todos pela editora JusPodivm, além de Análise Econômica das licitaçõeos e contratos (coautor. 2ª edição, Ed. Fórum).

2. GARCIA, Flávio Amaral. MOREIRA, Egon Bockmann. A futura nova lei de licitações brasileira: seus principais desafios, analisados individualmente. R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 18, n. 69, p. 39-73, jan./mar. 2020. Publicação original na Revista de Contratos Públicos do CEDIPRE (Universidade de Coimbra).

3. Art. 56. Das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito.

§ 1o O recurso será dirigido à autoridade que proferiu a decisão, a qual, se não a reconsiderar no prazo de cinco dias, o encaminhará à autoridade superior.

§ 2o Salvo exigência legal, a interposição de recurso administrativo independe de caução.

§ 3o Se o recorrente alegar que a decisão administrativa contraria enunciado da súmula vinculante, caberá à autoridade prolatora da decisão impugnada, se não a reconsiderar, explicitar, antes de encaminhar o recurso à autoridade superior, as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula, conforme o caso. (Incluído pela Lei nº 11.417, de 2006).

4. Sobre esta não concessão do efeito suspensivo, vide comentários ao artigo 168 da Lei nº 14.133/2021, em nosso livro Leis de licitações pública comentadas (15ª edição).

(Im)possibilidade de recurso administrativo nas dispensas de licitaçãoda Lei 14.133/2021

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